Spectrum News: os planos audaciosos com minicérebros do pesquisador de autismo Alysson Muotri — Tismoo

Estudo de Muotri revela possível ligação entre exposição ao chumbo e evolução da fala e do cérebro humano

Capa da revista Science Adavances de outubro de 2025.

Um estudo publicado nesta quarta-feira (15.out.2025), na revista Science Advances, sugere que a exposição prolongada ao chumbo pode ter desempenhado um papel inesperado na evolução do cérebro humano. Segundo os autores, a convivência de nossos ancestrais com o metal, há mais de 2 milhões de anos, pode ter exercido uma pressão evolutiva favorável a indivíduos com maior resistência aos efeitos tóxicos do chumbo — uma vantagem que teria contribuído para o surgimento de habilidades como a linguagem e a cooperação.

A pesquisa foi conduzida por um grupo internacional de cientistas, liderado pelo neurocientista brasileiro Alysson Muotri, professor de Pediatria e de Medicina Celular e Molecular da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA). “A gente acha que descobriu como a linguagem humana emergiu e por que os neandertais não tinham o cérebro suficiente para falar”, afirmou Muotri. “Usamos organoides com a versão arcaica e a versão moderna do gene, e mostramos que a forma atual, presente no Homo sapiens, foi selecionada por causa de uma contaminação com chumbo que começou há mais de 2 milhões de anos. É isso que estamos propondo — claro, é uma extrapolação dos dados experimentais, mas, até agora, ninguém tem evidências que contrariem essa hipótese.”

Vestígios nos dentes

Para chegar a essas conclusões, os cientistas analisaram dentes fossilizados de espécies ancestrais do ser humano, como Australopithecus, Homo habilis e neandertais, além de grandes primatas extintos, entre eles o gigantesco Gigantopithecus blacki, que viveu na China há cerca de 1,8 milhão de anos. As amostras foram coletadas em sítios arqueológicos da África do Sul, da China e da Croácia, abrangendo espécies que viveram em períodos diferentes da evolução humana.

Os fósseis mostraram padrões repetidos de contaminação por chumbo, preservados em camadas microscópicas do esmalte dental, semelhantes aos anéis de crescimento das árvores. Essas marcas indicam exposições sucessivas ao metal, o que sugere que nossos ancestrais conviveram com ambientes naturalmente contaminados, muito antes da poluição industrial.

O chumbo é um conhecido neurotóxico, capaz de prejudicar o desenvolvimento cognitivo e afetar regiões cerebrais associadas à linguagem e à atenção. Mesmo hoje, estima-se que uma em cada três crianças no mundo ainda apresente níveis de chumbo acima do limite considerado seguro, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo o estudo, fenômenos como erupções vulcânicas, poeira e nascentes subterrâneas poderiam carregar chumbo em níveis elevados. A hipótese é que famílias inteiras ingeriam essa água contaminada ao se abrigarem em cavernas.

Minicérebros e genética

No laboratório, os pesquisadores cultivaram esses minicérebros a partir de células-tronco humanas e os expuseram a pequenas doses de chumbo, simulando condições ambientais que nossos ancestrais poderiam ter enfrentado. As análises mostraram que os neurônios da versão arcaica do gene formavam menos sinapses e se desorganizavam com o metal, enquanto os da versão moderna mantinham suas conexões mais estáveis.

A equipe também criou organoides cerebrais — os chamados “minicérebros” — para observar como diferentes versões do gene NOVA1, presente em neandertais, denisovanos e humanos modernos, reagiriam à exposição ao chumbo. A versão “moderna”, exclusiva do Homo sapiens, mostrou-se significativamente mais resistente ao metal, preservando a expressão do FOXP2, gene associado à fala e à linguagem.

“A estrutura dos organoides era idêntica em tudo, exceto por aquela única variação genética, o que nos permitiu investigar se essa mutação específica entre nós e os neandertais poderia ter nos dado alguma vantagem”, explicou Muotri, que é um dos fundadores da Tismoo, uma health tech brasileira especialista em saúde digital para autistas e outras neurodivergências. Os resultados indicam que essa pequena alteração genética pode ter funcionado como uma espécie de escudo natural, reduzindo os danos causados pelas toxinas e favorecendo o desenvolvimento de redes neurais mais complexas.

A linguagem como vantagem evolutiva

A hipótese apresentada pelo grupo é que essa adaptação teria contribuído para o surgimento da fala e da comunicação complexa — características fundamentais para a organização social e o avanço cultural da espécie humana. “A linguagem é a nossa superpotência”, resumiu Muotri. “Ela nos permitiu organizar grupos, trocar ideias e construir civilizações. Talvez os neandertais tivessem pensamento abstrato, mas não conseguiam compartilhá-lo com a mesma eficiência.”

O estudo amplia o entendimento sobre os fatores biológicos e ambientais que moldaram a mente humana e reforça a importância de integrar dados de genética, arqueologia e neurociência para compreender a nossa origem.

Para ler o estudo científico original completo (em inglês), acesse este link da revista Science Advances.